EDUCAÇÃO MERCANTILISTA, FORMAÇÃO BANCÁRIA, DESPREPARO DOCENTE: OS EFEITOS DO MODELO TECNICISTA SOBRE A EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL.
EDUCAÇÃO MERCANTILISTA,
FORMAÇÃO BANCÁRIA, DESPREPARO DOCENTE: OS EFEITOS DO MODELO TECNICISTA SOBRE A
EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL.
Esse artigo é
dedicado ao GRUPO DE ESTUDOS DA COMPLEXIDADE-GRECOM (UFRN) e aos discentes,
atuais, do passado, e os que virão.
A educação brasileira enfrenta uma crise sem precedentes, fenômeno que
vem se acentuando, principalmente, nas duas últimas décadas. Esse acontecimento
nefasto integra, de forma bastante clara, a era de incerteza e insegurança em
que vivemos, e que atinge à maior parte das nossas instituições. Trata-se de
uma situação nebulosa, assustadora, que nos leva, muitas vezes, a perder a
esperança, diante das inúmeras dificuldades que são vislumbradas no horizonte.
O processo educacional agoniza, em nosso país. Educação de qualidade se
configura em discurso que nunca se realiza, na prática. Na verdade, um discurso
presente nas campanhas de alguns políticos, e quase sempre esquecido após o
processo eleitoral. A educação, no Brasil, acaba se prestando a um discurso
falacioso, demagógico, oportunista, um verdadeiro engodo, uma proposta que
jamais se concretiza, uma vez que, na verdade, não há interesse político em
modificar as regras do jogo, sendo muito mais cômodo para os detentores do
poder manter o nível de ignorância de uma sociedade repleta de analfabetos
funcionais.
Essa verdadeira tragédia brasileira, orquestrada pelos donos do poder
político e econômico, não atinge apenas ao ensino fundamental e ao ensino
médio. Vitima, também, ao ensino superior, por mais que os otimistas repliquem
um discurso equivocado, no sentido de que temos um ensino superior de
qualidade, em muitas instituições brasileiras, especialmente nas instituições
públicas.
A realidade é muito diferente do discurso. Observar os fatos,
promover ou absorver um verdadeiro
choque de realidade, por mais doloroso que seja, é muito mais interessante do
que se deleitar com mentiras que só enganam aos desinformados, ou seja, à maioria
esmagadora da população tupiniquim.
Não
há como negar que a mencionada crise atinge de forma avassaladora à educação
jurídica, posto que se tata de um fenômeno que não se verifica, apenas, na
esfera do ensino médio e do ensino fundamental. A deficitária formação de nível
superior no Brasil sofre as desagradáveis consequências desse processo nocivo
ao desenvolvimento educacional.
Esse
processo atinge – e não poderia ser diferente – à advocacia, que perde
credibilidade. E isso não ocorre sem razão, pois a maior parte das Instituições
de Ensino Superior do país, na atualidade, não consegue formar juristas com o
perfil humanista que é fundamental à atividade advocatícia. Formam exércitos de
técnicos, multidões de burocratas, legiões de autômatos, e, em uma escala
infinitamente menor, formam juristas com perfil humanista.
O
fenômeno se alastra pelas instituições que possuem uma ligação direta com o
direito. A magistratura sofre críticas constantes em decorrência da morosidade
do Poder Judiciário, uma realidade inconteste em nosso país. Todavia, muitas
das vezes, as críticas são injustas, pois não mencionam que existem questões
legais, estruturais, alheias à vontade dos magistrados, que impedem que a nossa
justiça seja célere. Podemos afirmar até que essa situação é proposital, e
busca desacreditar à função do Estado que mais credibilidade detém junto à
população.
Os
desafios e obstáculos enfrentados pela educação jurídica brasileira são
inúmeros. Cursos de direito proliferam por essas terras abençoadas (não me
perguntem por quem). Muitos desses cursos apresentam qualidade infinitamente
inferior àquela que se espera de uma Instituição de Ensino Superior, com um
agravante assustador: a fabricação em massa de diplomas, que serão vendidos a
consumidores ávidos por um título hoje tão vulgarizado, apesar da nobreza da
profissão, o que demonstra claramente a banalização que atingiu à nossa
sofrível formação jurídica.
Essa avidez consumista por um
diploma de bacharel em direito promove um fenômeno extremamente prejudicial a
uma formação que deveria ser predominantemente humanista, uma vez que não há
como se conceber um jurista desprovido de conhecimento filosófico, sociológico,
histórico e político, tanto quanto de conhecimento jurídico. O bacharel em
direito que não possui essa formação pode ser definido com um “rabula
tecnicamente esclarecido”, que é que muitas das nossas Instituições de Ensino
Superior formam.
Formar
concurseiros, decoradores de leis e de códigos, é um verdadeiro desserviço ao direito, principalmente quando
levamos em conta o fato de que a sociedade complexa contemporânea exige um
perfil profissional distinto daquele que é equivocadamente forjado na maioria
dos cursos de direito espalhados pelo país.
Grande parte daqueles que obtêm o título de bacharel em direito não
possuem o mínimo preparo para o exercício da advocacia, o que não deixa de ser
uma constatação preocupante, como seria preocupante se a maior parte dos
médicos graduados em nossas faculdades de medicina não estivessem minimamente
aptos a clinicar, ao término do curso. Esse despreparo se estende, inclusive, a
muitos daqueles que são aprovados no Exame de Ordem.
Reza a lenda que o mencionado Exame é de difícil aprovação. Acreditar
nisso está em nível semelhante a acreditar em Papai Noel, Fada dos Dentes,
Democracia e outras fantasias que povoam o nosso imaginário. A prova da OAB é,
na pior das hipóteses, um instrumento com dificuldade média. Mas, se é assim,
por que tantos candidatos são reprovados? A essa pergunta, é fácil responder,
pois três fatores saltam aos olhos: o despreparo docente; o despreparo
discente; o “terrorismo” que é incentivado por partes interessadas na difusão
da ideia de dificuldade da prova.
O despreparo docente é flagrante. Muitos professores não estão
preparados para oferecer uma formação que possibilite a interpretação, a
contextualização, a visão humanista, o desligamento dos aspectos meramente
tecnicistas, que forma autômatos em vez de juristas. Outro aspecto que não pode deixar de ser
considerado é a ausência de compromisso de muitos docentes. Um dos grandes
desserviços prestados à educação jurídica brasileira foi o erro de não estabelecer
a clara dissociação que existe entre o educador e o orador, o palestrante, o
jurista bem sucedido. Um Promotor de Justiça, um advogado, um juiz, não é
obrigatoriamente um bom educador. É o mesmo que dizer que, no futebol, um bom
goleiro será um excelente atacante, se tiver que atuar naquela posição, e
vice-versa. As habilidades e competências que precisa desenvolver para
desempenhar a sua função abaixo das traves, impedindo o gol do adversário são
distintas daquela que o centroavante terá que desenvolver para ser um
artilheiro e fazer exatamente o oposto de evitar gols, ou seja: marcar gols.
Faltam docentes comprometidos com uma formação jurídica de qualidade.
Sobram docentes sem qualificação, sem conhecimento pedagógico, sem compromisso
com a atividade docente. Paulo Roney
Ávila Fagúndez, em artigo publicado no ano de 2006 na Revista da Ordem dos
Advogados, apresenta questionamentos intrigantes e conclusões, a meu ver,
acertadas, acerta da questão, ao denunciar a existência de um estelionato
educacional, de um pacto de mediocridade: o professor finge que ensina e o
aluno finge que aprende; os cursos são organizados e atendem às necessidades do
mercado.
O despreparo da maior parte dos nossos bacharéis decorre de vários
fatores, e não há como atribuir responsabilidade apenas aos discentes pelas
falhas em sua formação, pelos equívocos, pela aquisição do diploma. Dentre os
fatores que agravam o quadro, talvez o mais preocupante seja o descaso de
muitas instituições de ensino, que não se preocupam como o despreparo de muitos
de seus docentes. Afinal, docentes sem compromisso com a docência, repetidores
de Códigos, flagrantemente despreparados para o exercício da docência custam em
mais barato do que docentes titulados e comprometidos.
Obviamente, não se trata de um fenômeno recente ou repentino, mas que se
acentuou a partir da proliferação irresponsável e exacerbada de Cursos de
Direito, principalmente nos últimos 25 anos. Trata-se de uma verdadeira
“epidemia”, e podemos utilizar o termo tanto no sentido quantitativo, como
surto de doença infecciosa, que se espalha por um território, ou vários
territórios, quanto qualitativo, no seu aspecto nocivo, danoso, prejudicial à
saúde, no caso, à “saúde” social.
Os entraves à existência de uma educação jurídica de qualidade decorrem, principalmente, de uma visão
mercadológica, mas, também, de equívocos gradativamente cometidos por aqueles
que são responsáveis pelo direcionamento da educação jurídica, no Brasil. Todavia,
estamos a falar de causas mais recentes. Existem, por outro lado, causas mais
antigas, pois o tecnicismo, que passou a
vigorar a partir do Século XVIII, o positivismo, cujo predomínio remonta ao Século XIX e a
falácia ilusória do progresso, uma febre que assolou o Ocidente nos dois
últimos séculos, transformaram, cada uma a seu tempo, a formação historicamente humanista dos
bacharéis em direito em uma ferramenta predominantemente voltada para a defesa
dos interesses do capital, da ciência, da economia.
A situação se agravou consideravelmente quando os interesses mercadológicos,
dentre eles a venda indiscriminada de diplomas, e a mercantilização do sonho em
lograr aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, que, para uma
maioria assustadora, não se concretiza, impossibilitando o exercício legal da
profissão e advogado, passaram a ditar as regras da educação jurídica nesse
paraíso da corrupção.
Outro sonho constantemente vendido é o da independência financeira, que
promoveria a realização de ideais consumistas flagrantemente motivados pela bandeira
ilusória do progresso, pelo domínio da ideologia capitalista, pela
predominância da mecanização excessiva. É esse sonho que conduz milhões de
pessoas aos cursos de direito, principalmente na rede privada, objetivando
aprovação em certames que exigem um conhecimento técnico que a maioria não se
preocupa em adquirir nos cinco anos de duração mínima do curso.
Existe uma resistência organizada, poderosa e economicamente, nociva,
que, defendendo a fragmentação, a
especialização, a individualidade egoísta, a competição, se levanta, há
décadas, contra a reflexão, a humanização, a interdisciplinaridade, negando-se
reconhecer a complexidade social. Tal fenômeno ocorre em quase todos os cursos
jurídicos espalhados pelo país, profundamente marcados pelo dogmatismo e pela
visão tecnicista, concurseira, ou seja, voltada para os interesses de uma
parcela desinformada que acredita que o simples fato de ser aprovado nas
disciplinas que compõem a Matriz Curricular do curso habilitará ao exercício da
advocacia, ou, ao menos, à aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil,
abrindo as portas para a pretensa aprovação em Concursos Públicos que oferecem
salários acintosos, se comparados com o salário de um educador, somente para
citar um exemplo dentre tantos outros profissionais que não percebem
remuneração equivalente à de membros do Poder Judiciário, do Ministério
Público, de outros cargos ligados à carreira jurídica, com exceção da docência
nos cursos que formam esses profissionais.
As questões mercadológicas se
sobrepõem, cada vez mais, às questões acadêmicas, determinando as regras que
devem ser seguidas pelas instituições educacionais que, teoricamente, deveriam
oferecer uma educação jurídica de qualidade. Tais questões se encontram,
portanto, em primeiro lugar. Questões acadêmicas relevantes, discussões
enriquecedoras, contextualização, reconhecimento da complexidade social, não
interessam para os supostos formadores de bacharéis em Direito, ou em Ciências
Jurídicas, como querem alguns.
Grande parte dos docentes e das
Instituições de Ensino Superior voltadas para a chamada Educação Jurídica enxergam
o discente como um número, não como um indivíduo em busca da melhor formação,
até mesmo porque muitos discentes buscam apenas o diploma, e não o
conhecimento. Assim, para que cobrar
desse acadêmico os conteúdos que poderiam solidificar a sua formação, dotando-o
de conhecimentos sociológicos, literários, filosóficos, políticos, históricos,
naturalmente acrescidos de uma visão humanista, se a finalidade precípua é a
comercialização de um diploma, que possibilitará, supostamente, a aprovação do
candidato no Exame da Ordem dos Advogados, ou nos concursos públicos que
proliferam pelo país, a maior parte destes permitindo, caso se consolide a
sonhada provação, a independência financeira do candidato?
Diante desse contexto sombrio,
predomina, no Brasil, no que concerne aos cursos de direito, a educação
bancária, mecânica, concurseira, o
que se configura em um dos mais significativos e nocivos males dentre aqueles
que acometem a formação jurídica, hodiernamente. O processo de mecanização na
formação jurídica e essa visão concurseira
se retroalimentam, provocando danos irreparáveis a curto e a médio prazo, o que
nos leva à constatação de que, cada vez mais, a educação jurídica encontra-se
profundamente marcada, na nossa realidade contemporânea, pelo dogmatismo, pelo
tecnicismo, pela formação de autômatos, memorizadores de Códigos, pretensos
intérpretes da letra da lei.
Nesse cenário, são visíveis os prejuízos causados pela nociva ausência
de compromisso, por parte de muitas Instituições de Ensino Superior, naquilo
que diz respeito a uma formação humanista, crítica e ética, voltada para a defesa
e preservação de valores que parecem não mais predominar em nosso meio social,
valores que foram responsáveis, inclusive, pelo despertar jurídico, na aurora
dos tempos.
Todavia, o que mais causa espécie é o fato de que a maior parte das IES
“dedicadas” à Educação Jurídica – uma verdadeira mina de ouro, para muitas
delas – acena para uma suposta formação humanista, que propicie ao bacharelando
uma visão crítica acerca do direito e da sociedade regulada pelo mesmo. Esse é
o discurso difundido nos Projetos Pedagógicos e Políticos de Cursos, em várias
instituições, não obstante a flagrante verificação de uma prática contrária aos
princípios éticos relacionados a uma postura crítica e humanista.
Se existisse uma preocupação verdadeira em oferecer uma formação
norteada por uma crítica acerca da condição humana, bem como dos reflexos do
reconhecimento dessa condição sobre o processo educacional, não existiria um
panorama tão tenebroso quanto à qualificação dos bacharéis em direito, no
Brasil. Uma prova irrefutável disso é o fracasso de várias instituições em uma
prova que apresenta um grau médio de dificuldade, como o Exame de Ordem, bem
como no ENADE, que exige do discente um conhecimento contextualizado, raramente
exercitado na formação tecnicista.
Diante dessa aparente vitória do egoísmo mercantilista e do
individualismo capitalista, muitas instituições se desvinculam cada vez mais do
compromisso em formar cidadãos éticos, comprometidos com os mais legítimos
anseios sociais, movidos por uma visão bem mais abrangente e complexa quanto ao
exercício da cidadania, quanto ao respeito à diversidade e quanto à necessidade
de religação, de defesa do meio ambiente, de defesa dos interesses daqueles que
se encontram à margem da sociedade,
desfavorecidos economicamente, politicamente, juridicamente, daqueles
que, em decorrência de questões étnicas, políticas e religiosas foram
historicamente relegados a um plano secundário, deixados à margem da sociedade,
a partir de um modelo educacional agressivo, que se esquiva de priorizar, sem
concessões, uma educação que valorize a defesa dos Direitos Humanos e o estudo
da condição humana, do papel do indivíduo na sociedade, dos efeitos nocivos,
mutiladores e nefastos de um modelo educacional falido.
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