EDUCAÇÃO MERCANTILISTA, FORMAÇÃO BANCÁRIA, DESPREPARO DOCENTE: OS EFEITOS DO MODELO TECNICISTA SOBRE A EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL.

A educação brasileira enfrenta uma crise sem precedentes, fenômeno que vem se acentuando, principalmente, nas duas últimas décadas. Esse acontecimento nefasto integra, de forma bastante clara, a era de incerteza e insegurança em que vivemos, e que atinge à maior parte das nossas instituições. Trata-se de uma situação nebulosa, assustadora, que nos leva, muitas vezes, a perder a esperança, diante das inúmeras dificuldades que são vislumbradas no horizonte.
O processo educacional agoniza, em nosso país. Educação de qualidade se configura em discurso que nunca se realiza, na prática. Na verdade, um discurso presente nas campanhas de alguns políticos, e quase sempre esquecido após o processo eleitoral. A educação, no Brasil, acaba se prestando a um discurso falacioso, demagógico, oportunista, um verdadeiro engodo, uma proposta que jamais se concretiza, uma vez que, na verdade, não há interesse político em modificar as regras do jogo, sendo muito mais cômodo para os detentores do poder manter o nível de ignorância de uma sociedade repleta de analfabetos funcionais.
Essa verdadeira tragédia brasileira, orquestrada pelos donos do poder político e econômico, não atinge apenas ao ensino fundamental e ao ensino médio. Vitima, também, ao ensino superior, por mais que os otimistas repliquem um discurso equivocado, no sentido de que temos um ensino superior de qualidade, em muitas instituições brasileiras, especialmente nas instituições públicas.
A realidade é muito diferente do discurso. Observar os fatos, promover  ou absorver um verdadeiro choque de realidade, por mais doloroso que seja, é muito mais interessante do que se deleitar com mentiras que só enganam aos desinformados, ou seja, à maioria esmagadora da população tupiniquim.
Não há como negar que a mencionada crise atinge de forma avassaladora à educação jurídica, posto que se tata de um fenômeno que não se verifica, apenas, na esfera do ensino médio e do ensino fundamental. A deficitária formação de nível superior no Brasil sofre as desagradáveis consequências desse processo nocivo ao desenvolvimento educacional.

Esse processo atinge – e não poderia ser diferente – à advocacia, que perde credibilidade. E isso não ocorre sem razão, pois a maior parte das Instituições de Ensino Superior do país, na atualidade, não consegue formar juristas com o perfil humanista que é fundamental à atividade advocatícia. Formam exércitos de técnicos, multidões de burocratas, legiões de autômatos, e, em uma escala infinitamente menor, formam juristas com perfil humanista.
O fenômeno se alastra pelas instituições que possuem uma ligação direta com o direito. A magistratura sofre críticas constantes em decorrência da morosidade do Poder Judiciário, uma realidade inconteste em nosso país. Todavia, muitas das vezes, as críticas são injustas, pois não mencionam que existem questões legais, estruturais, alheias à vontade dos magistrados, que impedem que a nossa justiça seja célere. Podemos afirmar até que essa situação é proposital, e busca desacreditar à função do Estado que mais credibilidade detém junto à população. 
            Os desafios e obstáculos enfrentados pela educação jurídica brasileira são inúmeros. Cursos de direito proliferam por essas terras abençoadas (não me perguntem por quem). Muitos desses cursos apresentam qualidade infinitamente inferior àquela que se espera de uma Instituição de Ensino Superior, com um agravante assustador: a fabricação em massa de diplomas, que serão vendidos a consumidores ávidos por um título hoje tão vulgarizado, apesar da nobreza da profissão, o que demonstra claramente a banalização que atingiu à nossa sofrível formação jurídica.  
            Essa avidez consumista por um diploma de bacharel em direito promove um fenômeno extremamente prejudicial a uma formação que deveria ser predominantemente humanista, uma vez que não há como se conceber um jurista desprovido de conhecimento filosófico, sociológico, histórico e político, tanto quanto de conhecimento jurídico. O bacharel em direito que não possui essa formação pode ser definido com um “rabula tecnicamente esclarecido”, que é que muitas das nossas Instituições de Ensino Superior formam.
            Formar concurseiros, decoradores de leis e de códigos, é um verdadeiro  desserviço ao direito, principalmente quando levamos em conta o fato de que a sociedade complexa contemporânea exige um perfil profissional distinto daquele que é equivocadamente forjado na maioria dos cursos de direito espalhados pelo país.  
Grande parte daqueles que obtêm o título de bacharel em direito não possuem o mínimo preparo para o exercício da advocacia, o que não deixa de ser uma constatação preocupante, como seria preocupante se a maior parte dos médicos graduados em nossas faculdades de medicina não estivessem minimamente aptos a clinicar, ao término do curso. Esse despreparo se estende, inclusive, a muitos daqueles que são aprovados no Exame de Ordem.
Reza a lenda que o mencionado Exame é de difícil aprovação. Acreditar nisso está em nível semelhante a acreditar em Papai Noel, Fada dos Dentes, Democracia e outras fantasias que povoam o nosso imaginário. A prova da OAB é, na pior das hipóteses, um instrumento com dificuldade média. Mas, se é assim, por que tantos candidatos são reprovados? A essa pergunta, é fácil responder, pois três fatores saltam aos olhos: o despreparo docente; o despreparo discente; o “terrorismo” que é incentivado por partes interessadas na difusão da ideia de dificuldade da prova.    
O despreparo docente é flagrante. Muitos professores não estão preparados para oferecer uma formação que possibilite a interpretação, a contextualização, a visão humanista, o desligamento dos aspectos meramente tecnicistas, que forma autômatos em vez de juristas.  Outro aspecto que não pode deixar de ser considerado é a ausência de compromisso de muitos docentes. Um dos grandes desserviços prestados à educação jurídica brasileira foi o erro de não estabelecer a clara dissociação que existe entre o educador e o orador, o palestrante, o jurista bem sucedido. Um Promotor de Justiça, um advogado, um juiz, não é obrigatoriamente um bom educador. É o mesmo que dizer que, no futebol, um bom goleiro será um excelente atacante, se tiver que atuar naquela posição, e vice-versa. As habilidades e competências que precisa desenvolver para desempenhar a sua função abaixo das traves, impedindo o gol do adversário são distintas daquela que o centroavante terá que desenvolver para ser um artilheiro e fazer exatamente o oposto de evitar gols, ou seja: marcar gols.
Faltam docentes comprometidos com uma formação jurídica de qualidade. Sobram docentes sem qualificação, sem conhecimento pedagógico, sem compromisso com a atividade docente.   Paulo Roney Ávila Fagúndez, em artigo publicado no ano de 2006 na Revista da Ordem dos Advogados, apresenta questionamentos intrigantes e conclusões, a meu ver, acertadas, acerta da questão, ao denunciar a existência de um estelionato educacional, de um pacto de mediocridade: o professor finge que ensina e o aluno finge que aprende; os cursos são organizados e atendem às necessidades do mercado.
 o curso de direito deve proporcionar uma formação sociológica e política;  

O despreparo da maior parte dos nossos bacharéis decorre de vários fatores, e não há como atribuir responsabilidade apenas aos discentes pelas falhas em sua formação, pelos equívocos, pela aquisição do diploma. Dentre os fatores que agravam o quadro, talvez o mais preocupante seja o descaso de muitas instituições de ensino, que não se preocupam como o despreparo de muitos de seus docentes. Afinal, docentes sem compromisso com a docência, repetidores de Códigos, flagrantemente despreparados para o exercício da docência custam em mais barato do que docentes titulados e comprometidos.
Obviamente, não se trata de um fenômeno recente ou repentino, mas que se acentuou a partir da proliferação irresponsável e exacerbada de Cursos de Direito, principalmente nos últimos 25 anos. Trata-se de uma verdadeira “epidemia”, e podemos utilizar o termo tanto no sentido quantitativo, como surto de doença infecciosa, que se espalha por um território, ou vários territórios, quanto qualitativo, no seu aspecto nocivo, danoso, prejudicial à saúde, no caso, à “saúde” social.  
Os entraves à existência de uma educação jurídica de qualidade  decorrem, principalmente, de uma visão mercadológica, mas, também, de equívocos gradativamente cometidos por aqueles que são responsáveis pelo direcionamento da educação jurídica, no Brasil. Todavia, estamos a falar de causas mais recentes. Existem, por outro lado, causas mais antigas, pois o  tecnicismo, que passou a vigorar a partir do Século XVIII, o positivismo,  cujo predomínio remonta ao Século XIX e a falácia ilusória do progresso, uma febre que assolou o Ocidente nos dois últimos séculos, transformaram, cada uma a seu tempo,  a formação historicamente humanista dos bacharéis em direito em uma ferramenta predominantemente voltada para a defesa dos interesses do capital, da ciência, da economia.
A situação se agravou consideravelmente quando os interesses mercadológicos, dentre eles a venda indiscriminada de diplomas, e a mercantilização do sonho em lograr aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, que, para uma maioria assustadora, não se concretiza, impossibilitando o exercício legal da profissão e advogado, passaram a ditar as regras da educação jurídica nesse paraíso da corrupção. 
Outro sonho constantemente vendido é o da independência financeira, que promoveria a realização de ideais consumistas flagrantemente motivados pela bandeira ilusória do progresso, pelo domínio da ideologia capitalista, pela predominância da mecanização excessiva. É esse sonho que conduz milhões de pessoas aos cursos de direito, principalmente na rede privada, objetivando aprovação em certames que exigem um conhecimento técnico que a maioria não se preocupa em adquirir nos cinco anos de duração mínima do curso.
Existe uma resistência organizada, poderosa e economicamente, nociva, que, defendendo a  fragmentação, a especialização, a individualidade egoísta, a competição, se levanta, há décadas, contra a reflexão, a humanização, a interdisciplinaridade, negando-se reconhecer a complexidade social. Tal fenômeno ocorre em quase todos os cursos jurídicos espalhados pelo país, profundamente marcados pelo dogmatismo e pela visão tecnicista, concurseira, ou seja, voltada para os interesses de uma parcela desinformada que acredita que o simples fato de ser aprovado nas disciplinas que compõem a Matriz Curricular do curso habilitará ao exercício da advocacia, ou, ao menos, à aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, abrindo as portas para a pretensa aprovação em Concursos Públicos que oferecem salários acintosos, se comparados com o salário de um educador, somente para citar um exemplo dentre tantos outros profissionais que não percebem remuneração equivalente à de membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, de outros cargos ligados à carreira jurídica, com exceção da docência nos cursos que formam esses profissionais.  
            As questões mercadológicas se sobrepõem, cada vez mais, às questões acadêmicas, determinando as regras que devem ser seguidas pelas instituições educacionais que, teoricamente, deveriam oferecer uma educação jurídica de qualidade. Tais questões se encontram, portanto, em primeiro lugar. Questões acadêmicas relevantes, discussões enriquecedoras, contextualização, reconhecimento da complexidade social, não interessam para os supostos formadores de bacharéis em Direito, ou em Ciências Jurídicas, como querem alguns.
            Grande parte dos docentes e das Instituições de Ensino Superior voltadas para a chamada Educação Jurídica enxergam o discente como um número, não como um indivíduo em busca da melhor formação, até mesmo porque muitos discentes buscam apenas o diploma, e não o conhecimento.  Assim, para que cobrar desse acadêmico os conteúdos que poderiam solidificar a sua formação, dotando-o de conhecimentos sociológicos, literários, filosóficos, políticos, históricos, naturalmente acrescidos de uma visão humanista, se a finalidade precípua é a comercialização de um diploma, que possibilitará, supostamente, a aprovação do candidato no Exame da Ordem dos Advogados, ou nos concursos públicos que proliferam pelo país, a maior parte destes permitindo, caso se consolide a sonhada provação, a independência financeira do candidato?
            Diante desse contexto sombrio, predomina, no Brasil, no que concerne aos cursos de direito, a educação bancária, mecânica, concurseira, o que se configura em um dos mais significativos e nocivos males dentre aqueles que acometem a formação jurídica, hodiernamente. O processo de mecanização na formação jurídica e essa visão concurseira se retroalimentam, provocando danos irreparáveis a curto e a médio prazo, o que nos leva à constatação de que, cada vez mais, a educação jurídica encontra-se profundamente marcada, na nossa realidade contemporânea, pelo dogmatismo, pelo tecnicismo, pela formação de autômatos, memorizadores de Códigos, pretensos intérpretes da letra da lei.
Nesse cenário, são visíveis os prejuízos causados pela nociva ausência de compromisso, por parte de muitas Instituições de Ensino Superior, naquilo que diz respeito a uma formação humanista, crítica e ética, voltada para a defesa e preservação de valores que parecem não mais predominar em nosso meio social, valores que foram responsáveis, inclusive, pelo despertar jurídico, na aurora dos tempos.
Todavia, o que mais causa espécie é o fato de que a maior parte das IES “dedicadas” à Educação Jurídica – uma verdadeira mina de ouro, para muitas delas – acena para uma suposta formação humanista, que propicie ao bacharelando uma visão crítica acerca do direito e da sociedade regulada pelo mesmo. Esse é o discurso difundido nos Projetos Pedagógicos e Políticos de Cursos, em várias instituições, não obstante a flagrante verificação de uma prática contrária aos princípios éticos relacionados a uma postura crítica e humanista.
Se existisse uma preocupação verdadeira em oferecer uma formação norteada por uma crítica acerca da condição humana, bem como dos reflexos do reconhecimento dessa condição sobre o processo educacional, não existiria um panorama tão tenebroso quanto à qualificação dos bacharéis em direito, no Brasil. Uma prova irrefutável disso é o fracasso de várias instituições em uma prova que apresenta um grau médio de dificuldade, como o Exame de Ordem, bem como no ENADE, que exige do discente um conhecimento contextualizado, raramente exercitado na formação tecnicista.
Diante dessa aparente vitória do egoísmo mercantilista e do individualismo capitalista, muitas instituições se desvinculam cada vez mais do compromisso em formar cidadãos éticos, comprometidos com os mais legítimos anseios sociais, movidos por uma visão bem mais abrangente e complexa quanto ao exercício da cidadania, quanto ao respeito à diversidade e quanto à necessidade de religação, de defesa do meio ambiente, de defesa dos interesses daqueles que se encontram à margem da sociedade,  desfavorecidos economicamente, politicamente, juridicamente, daqueles que, em decorrência de questões étnicas, políticas e religiosas foram historicamente relegados a um plano secundário, deixados à margem da sociedade, a partir de um modelo educacional agressivo, que se esquiva de priorizar, sem concessões, uma educação que valorize a defesa dos Direitos Humanos.
            Falta poesia na pretensa educação jurídica. Devemos reconhecer, urgentemente, que vivemos de prosa e poesia. À ideia de Holderlin, de que poeticamente, o homem habita a terra, MORIN (1997, p. 39) acrescenta que “é necessário dizer que o homem a habita poética e prosaicamente ao mesmo tempo.”  Uma educação jurídica poética reconheceria o diálogo entre direito e arte, direito e natureza, direito e sociedade, de forma mais ampla, promovendo a discussão constante de temas usualmente abordados a partir de elementos legais, técnicos, encarados a partir de uma perspectiva fragmentada.
            Quanto conhecimento não é perdido em uma abordagem que valoriza as partes e desconsidera o todo? Quanto não poderia ser acrescido na formação dos bacharéis em direito, se houvesse uma contextualização dos temas apresentados nos Planos de Ensino? Se a sala de aula se transformasse em um local onde ocorresse um constante exercício de ligação entre o que está sendo discutido, e que se encontra presente nos Códigos, nas leis, na doutrina, quase sempre a partir de uma perspectiva dogmática, e a realidade social, os elementos históricos, antropológicos, políticos, filosóficos, que circundam os aspectos jurídicos, e complementam a formação do jurista, estabelecendo um vínculo entre temas aparentemente restritos ao âmbito jurídico com aquilo que se encontra na parte externa, fora desse âmbito, mas que guarda com o fenômeno jurídico uma relação incontestável de proximidade e de interdependência, o ganho intelectual para os acadêmicos seria incalculável.
            Tomemos como exemplo a violência urbana. Uma de suas facetas é a violência contra a mulher, historicamente tolerada no Brasil e em grande parte do mundo, por séculos. Muitos Trabalhos de Conclusão de Curso de acadêmicos de Direito tratam da Lei Maria da Penha, criada para proteger a mulher da violência que, anteriormente, quase sempre gerava impunidade. A lei foi criada, está em vigor desde o ano de 2006, mas inexiste uma conscientização social, e a maior parte daqueles discentes que pesquisam o tema omitem, muitas das vezes, os aspectos históricos, sociológicos, econômicos, políticos e religiosos que devem nortear qualquer pesquisa sobre a temática, valorizando apenas a letra da lei, e, quando muito, as estatísticas relacionadas à violência contra a mulher, em uma determinada localidade.   
            Essa postura equivocada decorre especialmente do modelo em que foram formados esses discentes. A preocupação principal, talvez única, foi com a transmissão de conteúdos normativos, revestidos de uma análise muitas vezes superficial, raras vezes mais aprofundada, dependendo do perfil do docente.
            Quanto não seria vantajoso para os discentes se o docente, demonstrando preparo para o exercício da docência, discutisse o tema não apenas com base no viés jurídico? A utilização de obras de arte, de letras de músicas, de películas, de peças teatrais, serviria para educar e estimular a discussão da temática abordada, a partir de um ponto de vista mais abrangente, que não se limitasse à análise da lei, da doutrina e da jurisprudência, tripé sobre o qual se sustenta a formação jurídica dogmática e tecnicista.
            No âmbito dessa perspectiva, também poderiam ser discutidos muitos outros tópicos, como a delinquência entre jovens e adolescentes, os métodos cada vez mais sofisticados de invasão à privacidade, o desrespeito à imagem, as diferentes facetas e acepções da liberdade, os mecanismos de poder, as questões de gênero, a desigualdade, o tráfico de drogas, a questão carcerária, a crise educacional, a corrupção, a impunidade, dentre outros temas, estabelecendo as conexões necessárias e pertinentes entre os referidos temas e a abordagem que a arte realiza acerca destes.
            A partir de uma didática que percorreu os séculos, os cursos de direito seguem o ritual da fragmentação, que desconsidera constantemente que o direito é uno, sendo dividido, fracionado e compartimentado para atender a uma metodologia ultrapassada, que não dialoga com a realidade. Esse modelo parece representar o desconhecimento do fato de que o futuro jurista estará inserido no contexto social, como agente transformador. Para que isso ocorra, se faz necessária uma formação que o prepare de maneira adequada para a adoção de um papel fundamental no processo de transformação da sociedade.
            A educação jurídica teima em desconsiderar que a criatividade é o destino do homem, e que a arte – espaço da criatividade – deveria ser uma eterna parceira na busca do conhecimento, uma ferramenta essencial à compreensão do mundo que nos cerca, e que é regulado pelo direito. O processo educacional não pode prescindir desse instrumento e os gregos compreendiam isso na Antiguidade pré-cristã.
            A Grécia foi educada a partir das manifestações artísticas. Homero, tratado por Platão como “o educador de toda a Grécia” (Jaeger, 1994, p.61)  ou “o primeiro maior criador e modelador da humanidade grega” (Jaeger, 1994, p.62)  ofereceu subsídios, a partir da divulgação de uma obra imortalizada pela História. Segundo Jaeger, “A concepção do poeta como educador do seu povo – no sentido mais amplo e profundo da palavra – foi familiar aos Gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua importância” (1994, p.61).
            A formação oferecida ao homem grego, humanista e poética, poderia ser oferecida nos cursos de direito atuais mesmo que, a princípio em doses moderadas. Uma formação que gradativamente absorvesse conteúdos humanistas, para depois adicioná-los ao conteúdo dogmático, tecnicista, poderia modelar juristas que unissem aos aspectos normativos, frios, rígidos do sistema legal, a flexibilidade, a criatividade, a leveza, tão distantes do tecnicismo burocrata que infelizmente prevalece na educação jurídica.
            MORIN (1997, p.37) ensina que o ser humano, em qualquer cultura, “produz duas linguagens a partir da sua língua: uma linguagem que é a linguagem racional, empírica, prática, técnica; a outra que é simbólica, mítica, mágica.”. O primeiro modelo apontado por Morin predomina na transmissão do direito, desafortunadamente. Essa predominância se reflete, principalmente na frieza normativa, na rigidez dogmática, na inércia legislativa. A esse estado, Morin chama de prosaico, contrapondo-se ao estado poético, que é desconsiderado na formação jurídica.
            Para Morin, a contemporaneidade assiste ao “desfraldar de um modo de vida monitorizado, cronometrado, fragmentado, compartimentado, atomizado, e não só de um modo de vida, mas também de um modo de pensamento em que especialistas são doravante competentes para todos os problemas, e esta invasão da hiperprosa está ligada ao desfraldar económico-tecno-burocrático.” Esse modelo precisa de um antídoto, de um antagonista, que nos apresente o estado poético, mesmo diante do diálogo com a ciência e com a filosofia.
            Precisamos, mais do que nunca, de juristas preocupados com o exercício da solidariedade, comprometidos portanto, com uma postura que priorize o respeito à condição humana, que não reduza o indivíduo, como ocorre muitas vezes no âmbito judicial, ao ato transgressor que praticou, mas que por outro lado, possua a sensibilidade necessária para se posicionar ao lado dos que defendem os interesses coletivos mais nobres; que não se atenha apenas à letra fria da lei, mas também aos anseios sociais legítimos; que não sacralize o direito, mas entenda a sua atuação profissional cotidiana como um sacerdócio. Humanistas, e não positivistas. Esse perfil aponta para um jurista mais preocupado em aplicar a justiça, e não a letra da lei propriamente dita.
Trata-se de defender um resgate necessário de uma cultura de matiz universal, como ocorreu com a Paideia, entre os gregos, e a Humanitas, entre os romanos, esta última mais preocupada com os aspectos cosmopolitas da formação e que segundo ARANHA (2006, p.89), buscava “aquilo que caracteriza o ser humano, em todos os tempos e lugares”. E é entre os romanos que encontramos o embrião da educação jurídica, desenvolvida de forma original pelo espírito pragmático romano. Todavia, existe uma distância abismal entre esse modelo humanista, que se apoiava na elevação da justiça, da igualdade e do bem, enxergando no direito uma arte capaz de assegurar esses ideais e o formato educacional adotado por muitos cursos de direito a partir do predomínio da ideologia capitalista e de um modelo competitivo flagrantemente norteador das relações sociais.
Essa concepção romana foi sufocada pelo modelo mercadológico que assaltou a contemporaneidade e que passou a ser construído a partir da ascensão burguesa e do Renascimento, passando pelo Iluminismo e pelo domínio do capitalismo e do individualismo egoísta. MORIN, com propriedade, assevera que a Europa Ocidental presenciou o nascimento da nação moderna que “instituiu um novo modelo de sociedade/comunidade” (2005, p.148), e que permitiu que competições, rivalidades e antagonismos individuais, coletivos, econômicos e ideológicos se desenvolvessem. (Idem) 
Na antiguidade romana, o direito era visto de forma bem distinta daquela forma adotada em nossa sociedade e que decorre da visão mercadológica, egoísta e supostamente progressista apresentada pelo modelo capitalistaA ideia de direito entre os romanos encontra-se relacionada com a percepção do direito como a arte do justo equitativo, a partir do exercício da justiça, ou arte de dar a cada um o que lhe é devido. Tal concepção também expressa a dimensão humana. O direito, que era enxergado pela cultura romana como um verdadeiro saber das coisas humanas e divinas, se apresentava representado por premissas representativas dessa visão:  viver honrosamente; não prejudicar o próximo; dar a cada um o que lhe é devido; A ética, o equilíbrio e a ponderação se apresentavam como aspectos essenciais ao direito, que era o saber das coisas humanas e divinas. 
O espírito romano associou a justiça à natureza. Em Cícero, encontramos a defesa da tese de que fomos constituídos pela natureza “para compartilharmos o senso de Justiça um com o outro e para transmiti-lo a todos os homens”. (MORRIS, 2002, p. 38), Trata-se de uma reflexão emblemática para a compreensão da ideia adotada pelos romanos adotaram acerca da justiça. Essa concepção também associa o direito à arte, representada pelo exercício desse senso de justiça.
Edgar Morin assevera que o Século XX foi um século em crise, que deve ser olhado “com um olhar binocular” (2010, p.21), em que o “primeiro olho” nos apresenta o progresso, o desenvolvimento científico, econômico, industrial, consumista, civilizatório. Com base nessa via de compreensão do mencionado século, enxergamos o “progresso do desenvolvimento e de aparente racionalidade” mencionado por Morin (2010, p. 21) como uma de suas características mais marcantes. Essa ideia atinge a educação jurídica de forma contundente, uma vez que existe um flagrante desprezo àquilo que não comporta em si uma relação intensa com a questão do progresso e com uma falsa concepção de civilização, de cidadania, de valorização, de qualidade. Assim, com base na relação existente entre direito e sociedade, muitos enxergam aquele como um elemento que assegura efetivamente a consolidação dos objetivos mais nobres desta última, assegurando igualdade, segurança, liberdade, sem enxergar a real natureza do direito fenômeno jurídico. Essa postura representa, de forma clara, o comodismo que acomete muitos daqueles que não conseguem enxergar o direito como um instrumento de transformação, e sim, apenas, como mera representação de uma vontade social que, muitas vezes, pode se encontrar ultrapassada.
Existe uma automação inconteste na formação de bacharéis que são condicionados a valorizar as disciplinas técnicas, como o Direito Civil, o Direito Constitucional, o Direito Penal, o Direito Administrativo, dentre outros ramos do conhecimento jurídico relacionados aos aspectos técnicos ou mecânicos de sua formação, menosprezando a valiosa formação – essencial, e não meramente complementar ou propedêutica – que é oferecida por campos distintos do conhecimento, como a Psicologia, a Filosofia, a Sociologia, a História do Direito, a Ciência Política, a Hermenêutica, somente para citar algumas disciplinas vistas com importância menor por docentes equivocados e discentes mal informados.
MORIN (2005, p.181) considera que, diante da incapacidade de um sistema em tratar do que acomete os seus problemas vitais, “ele se desintegra ou se transforma num metasistema capaz de tratar desses problemas”, ou seja, “quanto mais nos aproximamos de uma catástrofe, mais a metamorfose é possível.” (2005, p. 181)    No que diz respeito à crise da educação jurídica, no Brasil, a catástrofe parece já ter se estabelecido. Precisamos agora de uma metamorfose, que se configure  em salvação, mesmo que, aparentemente, nada possa ser vislumbrado, nesse sentido.
  Uma reforma paradigmática sem precedentes no âmbito da Educação Jurídica se faz necessária, para que essa espécie em extinção, que é representada claramente pelo jurista conhecedor dos princípios que regem o Direito; pelo advogado conhecedor dos princípios jurídicos, que se posiciona de forma favorável aos anseios legítimos daqueles a quem representa; pelo Promotor Público conhecedor da realidade social, bem como dos princípios de natureza sociológica, filosófica, histórica, que devem nortear a sua nobre atuação como defensor dos interesses sociais;  pelo Procurador do Estado – ou da República – preocupado com os anseios legítimos do Estado, bem como do respeito que esse deve destinar aos cidadãos; pelo Juiz que atue como magistrado combativo, que, indignado com a injustiça, procura reverter o quadro a partir do lugar que ocupa na sociedade, não se extinga.
Existe uma inconteste necessidade em formar profissionais detentores de um olhar humanista, bem como de uma visão crítica acerca da sociedade e do próprio Direito que os cerca, juristas éticos, defensores dos Direitos Humanos e de valores relevantes como a dignidade da pessoa humana, a vida, a liberdade, a isonomia, incansáveis na defesa dos valores mais nobres dentre os que devem nortear a vida social. Precisamos formar bacharéis voltados para a discussão dos grandes temas nacionais e mundiais, defensores ferrenhos da justiça, dos interesses legítimos da sociedade e daqueles que representam, profissionais idealistas, humanistas, cultos, críticos.
            O direito não pode ser visto como fenômeno isolado no mundo do conhecimento. Sua autoridade como instrumento regulamentador de condutas humanas, objeto de estudo fundamental ao conhecimento das normas que regulam a vida social, não pode ser diminuída, menosprezada, desprezada. Porém, não podemos deixar de levar em consideração o fato de que o mundo jurídico não pode se desligar do mundo consuetudinário, do mundo sociológico, do mundo religioso, do mundo filosófico. Entender o direito dentro de uma plenitude, de uma abrangência que lhe deve ser atribuída, de uma ligação e religação constantes com o mundo que regula, e que o cerca, é bem mais salutar do que entendê-lo como fenômeno isolado, desprovido de conexões com os diversos aspectos que compõem a vida social.
Ainda com base nas ideias de MORIN, podemos afirmar que existe uma “segunda via”, uma contraposição à ideia de progresso e de racionalidade, que é representada pelas convulsões e pelos horrores. Trata-se daquilo que ele denomina “o segundo olho”, que enxerga um século ‘vulcanizado” por duas guerras de proporções gigantescas, uma via “de convulsões e horrores”. Essa segunda via decorre do fato de que, ao mesmo tempo em que ocorre, na modernidade, um desenvolvimento extraordinário “da ciência, da técnica, da economia e da capitalismo”, verifica-se, também, a existência simultânea de uma capacidade surpreendente de invenção, de um lado, e, de outro lado, de uma capacidade de manipulação e de destruição. (MORIN, 2011).   
A universalização se concretizou nas últimas décadas. Essa sociedade globalizada, universalizada em suas relações, principalmente tecnológicas e econômicas, não experimenta uma solidariedade universal, uma ideia de pertencimento a uma sociedade-mundo, no contexto de uma era planetária. Assim, ao mesmo tempo em que se verificam claramente as consequências de uma unificação eficaz, intensa, no que concerne às comunicações que se verificam no âmbito mercantil e no âmbito técnico, também nos deparamos com os fechamentos e as regressões, que levam a isolamentos tão significativos quanto as aberturas.  (MORIN, 2005, p. 163)
As forças de destruição parecem levar significativa vantagem, em muitos momentos, sobre as forças de regeneração e de conservação.  Os nocivos efeitos da atuação dessa segunda força projetam seus reflexos sobre a educação jurídica, que não consegue apresentar elementos de resistência consistentes o suficiente para a efetivação de um combate eficaz contra as forças de destruição. Assim, a violência, a injustiça, a desigualdade, a intolerância, acabam imperando em um mundo que, aparentemente, não consegue reunir as forças necessárias à resistência.
As consequências dessa segunda via também atingem diretamente, na contemporaneidade, à educação jurídica, que não consegue indicar que caminhos devem ser percorridos na busca de soluções para algumas situações que demonstram a existência de uma crise sem precedentes na moral social, uma crise que repercute também sobre o direito.       Na era planetária em que vivemos é fundamental a preparação do bacharelado para a compreensão dos mecanismos que regem a sociedade-mundo. Tal formação deve valorizar a adoção de temas transversais, a dialogar com todas as disciplinas, como a dignidade da pessoa humana, a tolerância, a solidariedade, a conciliação, sendo fundamental a discussão de temas urgentes como a morosidade do Poder Judiciário, a violência doméstica, o crime organizado, a impunidade, o sistema penitenciário, o preconceito, a desigualdade.
       Vivemos em uma Nova Idade das Trevas e precisamos de um novo Renascimento. A exemplo do que aconteceu na Idade Média e na década de 1960, o homem precisa vencer a escuridão mais uma vez e voltar à luz. De tempos em tempos a História, cíclica, nos mostra a necessidade de regeneração, reorganização, de bifurcação e de aposta. Assim, urge implantar uma educação jurídica que refute a fragmentação dos conteúdos disciplinares, exercitando a religação, e que consiga captar a complexidade do mundo, valorizando o que está tecido em conjunto. É necessário evitar os erros do passado e valorizar uma educação que privilegie a diversidade e a solidariedade, uma educação que liberte, contagie e revolucione, negando o isolamento disciplinar e favorecendo o reconhecimento da identidade planetária do indivíduo. A arte auxilia sobremaneira à necessária compreensão da antropoética, nas palavras de Morin, “o modo ético de assumir o destino humano”. 









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