EDUCAÇÃO MERCANTILISTA,
FORMAÇÃO BANCÁRIA, DESPREPARO DOCENTE: OS EFEITOS DO MODELO TECNICISTA SOBRE A
EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL.
A educação brasileira enfrenta uma crise sem precedentes, fenômeno que
vem se acentuando, principalmente, nas duas últimas décadas. Esse acontecimento
nefasto integra, de forma bastante clara, a era de incerteza e insegurança em que
vivemos, e que atinge à maior parte das nossas instituições. Trata-se de uma
situação nebulosa, assustadora, que nos leva, muitas vezes, a perder a
esperança, diante das inúmeras dificuldades que são vislumbradas no horizonte.
O processo educacional agoniza, em nosso país. Educação de qualidade se
configura em discurso que nunca se realiza, na prática. Na verdade, um discurso
presente nas campanhas de alguns políticos, e quase sempre esquecido após o
processo eleitoral. A educação, no Brasil, acaba se prestando a um discurso
falacioso, demagógico, oportunista, um verdadeiro engodo, uma proposta que
jamais se concretiza, uma vez que, na verdade, não há interesse político em
modificar as regras do jogo, sendo muito mais cômodo para os detentores do
poder manter o nível de ignorância de uma sociedade repleta de analfabetos
funcionais.
Essa verdadeira tragédia brasileira, orquestrada pelos donos do poder político
e econômico, não atinge apenas ao ensino fundamental e ao ensino médio. Vitima,
também, ao ensino superior, por mais que os otimistas repliquem um discurso equivocado,
no sentido de que temos um ensino superior de qualidade, em muitas instituições
brasileiras, especialmente nas instituições públicas.
A realidade é muito diferente do discurso. Observar os fatos, promover ou absorver um verdadeiro choque de
realidade, por mais doloroso que seja, é muito mais interessante do que se
deleitar com mentiras que só enganam aos desinformados, ou seja, à maioria
esmagadora da população tupiniquim.
Não
há como negar que a mencionada crise atinge de forma avassaladora à educação
jurídica, posto que se tata de um fenômeno que não se verifica, apenas, na
esfera do ensino médio e do ensino fundamental. A deficitária formação de nível
superior no Brasil sofre as desagradáveis consequências desse processo nocivo
ao desenvolvimento educacional.
Esse
processo atinge – e não poderia ser diferente – à advocacia, que perde
credibilidade. E isso não ocorre sem razão, pois a maior parte das Instituições
de Ensino Superior do país, na atualidade, não consegue formar juristas com o
perfil humanista que é fundamental à atividade advocatícia. Formam exércitos de
técnicos, multidões de burocratas, legiões de autômatos, e, em uma escala
infinitamente menor, formam juristas com perfil humanista.
O
fenômeno se alastra pelas instituições que possuem uma ligação direta com o
direito. A magistratura sofre críticas constantes em decorrência da morosidade
do Poder Judiciário, uma realidade inconteste em nosso país. Todavia, muitas
das vezes, as críticas são injustas, pois não mencionam que existem questões
legais, estruturais, alheias à vontade dos magistrados, que impedem que a nossa
justiça seja célere. Podemos afirmar até que essa situação é proposital, e
busca desacreditar à função do Estado que mais credibilidade detém junto à
população.
Os desafios e obstáculos enfrentados
pela educação jurídica brasileira são inúmeros. Cursos de direito proliferam
por essas terras abençoadas (não me perguntem por quem). Muitos desses cursos
apresentam qualidade infinitamente inferior àquela que se espera de uma
Instituição de Ensino Superior, com um agravante assustador: a fabricação em
massa de diplomas, que serão vendidos a consumidores ávidos por um título hoje
tão vulgarizado, apesar da nobreza da profissão, o que demonstra claramente a
banalização que atingiu à nossa sofrível formação jurídica.
Essa avidez consumista por um
diploma de bacharel em direito promove um fenômeno extremamente prejudicial a
uma formação que deveria ser predominantemente humanista, uma vez que não há
como se conceber um jurista desprovido de conhecimento filosófico, sociológico,
histórico e político, tanto quanto de conhecimento jurídico. O bacharel em
direito que não possui essa formação pode ser definido com um “rabula
tecnicamente esclarecido”, que é que muitas das nossas Instituições de Ensino
Superior formam.
Formar
concurseiros, decoradores de leis e de códigos, é um verdadeiro desserviço ao direito, principalmente quando
levamos em conta o fato de que a sociedade complexa contemporânea exige um
perfil profissional distinto daquele que é equivocadamente forjado na maioria
dos cursos de direito espalhados pelo país.
Grande parte daqueles que obtêm o título de bacharel em direito não
possuem o mínimo preparo para o exercício da advocacia, o que não deixa de ser
uma constatação preocupante, como seria preocupante se a maior parte dos
médicos graduados em nossas faculdades de medicina não estivessem minimamente aptos
a clinicar, ao término do curso. Esse despreparo se estende, inclusive, a
muitos daqueles que são aprovados no Exame de Ordem.
Reza a lenda que o mencionado Exame é de difícil aprovação. Acreditar
nisso está em nível semelhante a acreditar em Papai Noel, Fada dos Dentes,
Democracia e outras fantasias que povoam o nosso imaginário. A prova da OAB é,
na pior das hipóteses, um instrumento com dificuldade média. Mas, se é assim,
por que tantos candidatos são reprovados? A essa pergunta, é fácil responder,
pois três fatores saltam aos olhos: o despreparo docente; o despreparo
discente; o “terrorismo” que é incentivado por partes interessadas na difusão
da ideia de dificuldade da prova.
O despreparo docente é flagrante. Muitos professores não estão
preparados para oferecer uma formação que possibilite a interpretação, a
contextualização, a visão humanista, o desligamento dos aspectos meramente
tecnicistas, que forma autômatos em vez de juristas. Outro aspecto que não pode deixar de ser
considerado é a ausência de compromisso de muitos docentes. Um dos grandes
desserviços prestados à educação jurídica brasileira foi o erro de não
estabelecer a clara dissociação que existe entre o educador e o orador, o
palestrante, o jurista bem sucedido. Um Promotor de Justiça, um advogado, um
juiz, não é obrigatoriamente um bom educador. É o mesmo que dizer que, no
futebol, um bom goleiro será um excelente atacante, se tiver que atuar naquela
posição, e vice-versa. As habilidades e competências que precisa desenvolver
para desempenhar a sua função abaixo das traves, impedindo o gol do adversário
são distintas daquela que o centroavante terá que desenvolver para ser um
artilheiro e fazer exatamente o oposto de evitar gols, ou seja: marcar gols.
Faltam docentes comprometidos com uma formação jurídica de qualidade.
Sobram docentes sem qualificação, sem conhecimento pedagógico, sem compromisso
com a atividade docente. Paulo Roney
Ávila Fagúndez, em artigo publicado no ano de 2006 na Revista da Ordem dos
Advogados, apresenta questionamentos intrigantes e conclusões, a meu ver,
acertadas, acerta da questão, ao denunciar a existência de um estelionato
educacional, de um pacto de mediocridade: o professor finge que ensina e o
aluno finge que aprende; os cursos são organizados e atendem às necessidades do
mercado.
o curso de
direito deve proporcionar uma formação sociológica e política;
O despreparo da maior parte dos nossos bacharéis decorre de vários
fatores, e não há como atribuir responsabilidade apenas aos discentes pelas
falhas em sua formação, pelos equívocos, pela aquisição do diploma. Dentre os
fatores que agravam o quadro, talvez o mais preocupante seja o descaso de
muitas instituições de ensino, que não se preocupam como o despreparo de muitos
de seus docentes. Afinal, docentes sem compromisso com a docência, repetidores
de Códigos, flagrantemente despreparados para o exercício da docência custam em
mais barato do que docentes titulados e comprometidos.
Obviamente, não se trata de um fenômeno recente ou repentino, mas que se
acentuou a partir da proliferação irresponsável e exacerbada de Cursos de
Direito, principalmente nos últimos 25 anos. Trata-se de uma verdadeira
“epidemia”, e podemos utilizar o termo tanto no sentido quantitativo, como
surto de doença infecciosa, que se espalha por um território, ou vários
territórios, quanto qualitativo, no seu aspecto nocivo, danoso, prejudicial à
saúde, no caso, à “saúde” social.
Os entraves à existência de uma educação jurídica de qualidade decorrem, principalmente, de uma visão
mercadológica, mas, também, de equívocos gradativamente cometidos por aqueles
que são responsáveis pelo direcionamento da educação jurídica, no Brasil. Todavia,
estamos a falar de causas mais recentes. Existem, por outro lado, causas mais
antigas, pois o tecnicismo, que passou a
vigorar a partir do Século XVIII, o positivismo, cujo predomínio remonta ao Século XIX e a
falácia ilusória do progresso, uma febre que assolou o Ocidente nos dois últimos
séculos, transformaram, cada uma a seu tempo,
a formação historicamente humanista dos bacharéis em direito em uma
ferramenta predominantemente voltada para a defesa dos interesses do capital,
da ciência, da economia.
A situação se agravou consideravelmente quando os interesses mercadológicos,
dentre eles a venda indiscriminada de diplomas, e a mercantilização do sonho em
lograr aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, que, para uma
maioria assustadora, não se concretiza, impossibilitando o exercício legal da
profissão e advogado, passaram a ditar as regras da educação jurídica nesse
paraíso da corrupção.
Outro sonho constantemente vendido é o da independência financeira, que
promoveria a realização de ideais consumistas flagrantemente motivados pela
bandeira ilusória do progresso, pelo domínio da ideologia capitalista, pela
predominância da mecanização excessiva. É esse sonho que conduz milhões de
pessoas aos cursos de direito, principalmente na rede privada, objetivando
aprovação em certames que exigem um conhecimento técnico que a maioria não se
preocupa em adquirir nos cinco anos de duração mínima do curso.
Existe uma resistência organizada, poderosa e economicamente, nociva,
que, defendendo a fragmentação, a
especialização, a individualidade egoísta, a competição, se levanta, há
décadas, contra a reflexão, a humanização, a interdisciplinaridade, negando-se
reconhecer a complexidade social. Tal fenômeno ocorre em quase todos os cursos
jurídicos espalhados pelo país, profundamente marcados pelo dogmatismo e pela
visão tecnicista, concurseira, ou seja, voltada para os interesses de uma
parcela desinformada que acredita que o simples fato de ser aprovado nas
disciplinas que compõem a Matriz Curricular do curso habilitará ao exercício da
advocacia, ou, ao menos, à aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil,
abrindo as portas para a pretensa aprovação em Concursos Públicos que oferecem
salários acintosos, se comparados com o salário de um educador, somente para
citar um exemplo dentre tantos outros profissionais que não percebem
remuneração equivalente à de membros do Poder Judiciário, do Ministério
Público, de outros cargos ligados à carreira jurídica, com exceção da docência
nos cursos que formam esses profissionais.
As questões mercadológicas se
sobrepõem, cada vez mais, às questões acadêmicas, determinando as regras que
devem ser seguidas pelas instituições educacionais que, teoricamente, deveriam
oferecer uma educação jurídica de qualidade. Tais questões se encontram, portanto,
em primeiro lugar. Questões acadêmicas relevantes, discussões enriquecedoras,
contextualização, reconhecimento da complexidade social, não interessam para os
supostos formadores de bacharéis em Direito, ou em Ciências Jurídicas, como
querem alguns.
Grande parte dos docentes e das
Instituições de Ensino Superior voltadas para a chamada Educação Jurídica enxergam
o discente como um número, não como um indivíduo em busca da melhor formação,
até mesmo porque muitos discentes buscam apenas o diploma, e não o conhecimento. Assim, para que cobrar desse acadêmico os
conteúdos que poderiam solidificar a sua formação, dotando-o de conhecimentos
sociológicos, literários, filosóficos, políticos, históricos, naturalmente
acrescidos de uma visão humanista, se a finalidade precípua é a comercialização
de um diploma, que possibilitará, supostamente, a aprovação do candidato no
Exame da Ordem dos Advogados, ou nos concursos públicos que proliferam pelo
país, a maior parte destes permitindo, caso se consolide a sonhada provação, a
independência financeira do candidato?
Diante desse contexto sombrio,
predomina, no Brasil, no que concerne aos cursos de direito, a educação
bancária, mecânica, concurseira, o
que se configura em um dos mais significativos e nocivos males dentre aqueles
que acometem a formação jurídica, hodiernamente. O processo de mecanização na
formação jurídica e essa visão concurseira
se retroalimentam, provocando danos irreparáveis a curto e a médio prazo, o que
nos leva à constatação de que, cada vez mais, a educação jurídica encontra-se
profundamente marcada, na nossa realidade contemporânea, pelo dogmatismo, pelo
tecnicismo, pela formação de autômatos, memorizadores de Códigos, pretensos
intérpretes da letra da lei.
Nesse cenário, são visíveis os prejuízos causados pela nociva ausência
de compromisso, por parte de muitas Instituições de Ensino Superior, naquilo
que diz respeito a uma formação humanista, crítica e ética, voltada para a
defesa e preservação de valores que parecem não mais predominar em nosso meio
social, valores que foram responsáveis, inclusive, pelo despertar jurídico, na
aurora dos tempos.
Todavia, o que mais causa espécie é o fato de que a maior parte das IES
“dedicadas” à Educação Jurídica – uma verdadeira mina de ouro, para muitas
delas – acena para uma suposta formação humanista, que propicie ao bacharelando
uma visão crítica acerca do direito e da sociedade regulada pelo mesmo. Esse é
o discurso difundido nos Projetos Pedagógicos e Políticos de Cursos, em várias
instituições, não obstante a flagrante verificação de uma prática contrária aos
princípios éticos relacionados a uma postura crítica e humanista.
Se existisse uma preocupação verdadeira em oferecer uma formação
norteada por uma crítica acerca da condição humana, bem como dos reflexos do
reconhecimento dessa condição sobre o processo educacional, não existiria um
panorama tão tenebroso quanto à qualificação dos bacharéis em direito, no
Brasil. Uma prova irrefutável disso é o fracasso de várias instituições em uma
prova que apresenta um grau médio de dificuldade, como o Exame de Ordem, bem
como no ENADE, que exige do discente um conhecimento contextualizado, raramente
exercitado na formação tecnicista.
Diante dessa aparente vitória do egoísmo mercantilista e do
individualismo capitalista, muitas instituições se desvinculam cada vez mais do
compromisso em formar cidadãos éticos, comprometidos com os mais legítimos
anseios sociais, movidos por uma visão bem mais abrangente e complexa quanto ao
exercício da cidadania, quanto ao respeito à diversidade e quanto à necessidade
de religação, de defesa do meio ambiente, de defesa dos interesses daqueles que
se encontram à margem da sociedade,
desfavorecidos economicamente, politicamente, juridicamente, daqueles
que, em decorrência de questões étnicas, políticas e religiosas foram
historicamente relegados a um plano secundário, deixados à margem da sociedade,
a partir de um modelo educacional agressivo, que se esquiva de priorizar, sem
concessões, uma educação que valorize a defesa dos Direitos Humanos.
Falta poesia na pretensa educação
jurídica. Devemos reconhecer, urgentemente, que vivemos de prosa e poesia. À
ideia de Holderlin, de que poeticamente, o homem habita a terra, MORIN (1997,
p. 39) acrescenta que “é necessário dizer que o homem a habita poética e
prosaicamente ao mesmo tempo.” Uma
educação jurídica poética reconheceria o diálogo entre direito e arte, direito
e natureza, direito e sociedade, de forma mais ampla, promovendo a discussão
constante de temas usualmente abordados a partir de elementos legais, técnicos,
encarados a partir de uma perspectiva fragmentada.
Quanto conhecimento não é perdido em
uma abordagem que valoriza as partes e desconsidera o todo? Quanto não poderia
ser acrescido na formação dos bacharéis em direito, se houvesse uma
contextualização dos temas apresentados nos Planos de Ensino? Se a sala de aula
se transformasse em um local onde ocorresse um constante exercício de ligação
entre o que está sendo discutido, e que se encontra presente nos Códigos, nas
leis, na doutrina, quase sempre a partir de uma perspectiva dogmática, e a
realidade social, os elementos históricos, antropológicos, políticos,
filosóficos, que circundam os aspectos jurídicos, e complementam a formação do
jurista, estabelecendo um vínculo entre temas aparentemente restritos ao âmbito
jurídico com aquilo que se encontra na parte externa, fora desse âmbito, mas
que guarda com o fenômeno jurídico uma relação incontestável de proximidade e
de interdependência, o ganho intelectual para os acadêmicos seria incalculável.
Tomemos como exemplo a violência
urbana. Uma de suas facetas é a violência contra a mulher, historicamente
tolerada no Brasil e em grande parte do mundo, por séculos. Muitos Trabalhos de
Conclusão de Curso de acadêmicos de Direito tratam da Lei Maria da Penha,
criada para proteger a mulher da violência que, anteriormente, quase sempre
gerava impunidade. A lei foi criada, está em
vigor desde o ano de 2006, mas inexiste uma
conscientização social, e a maior parte daqueles discentes que pesquisam o tema
omitem, muitas das vezes, os aspectos históricos, sociológicos, econômicos,
políticos e religiosos que devem nortear qualquer pesquisa sobre a temática,
valorizando apenas a letra da lei, e, quando muito, as estatísticas
relacionadas à violência contra a mulher, em uma determinada localidade.
Essa postura equivocada decorre
especialmente do modelo em que foram formados esses discentes. A preocupação
principal, talvez única, foi com a transmissão de conteúdos normativos,
revestidos de uma análise muitas vezes superficial, raras vezes mais
aprofundada, dependendo do perfil do docente.
Quanto não seria vantajoso para os
discentes se o docente, demonstrando preparo para o exercício da docência,
discutisse o tema não apenas com base no viés jurídico? A utilização de obras
de arte, de letras de músicas, de películas, de peças teatrais, serviria para
educar e estimular a discussão da temática abordada, a partir de um ponto de
vista mais abrangente, que não se limitasse à análise da lei, da doutrina e da
jurisprudência, tripé sobre o qual se sustenta a formação jurídica dogmática e
tecnicista.
No âmbito dessa perspectiva, também
poderiam ser discutidos muitos outros tópicos, como a delinquência entre jovens
e adolescentes, os métodos cada vez mais sofisticados de invasão à privacidade,
o desrespeito à imagem, as diferentes facetas e acepções da liberdade, os
mecanismos de poder, as questões de gênero, a desigualdade, o tráfico de
drogas, a questão carcerária, a crise educacional, a corrupção, a impunidade,
dentre outros temas, estabelecendo as conexões necessárias e pertinentes entre
os referidos temas e a abordagem que a arte realiza acerca destes.
A partir de uma didática que percorreu os séculos, os cursos
de direito seguem o ritual da fragmentação, que desconsidera constantemente que
o direito é uno, sendo dividido, fracionado e compartimentado para atender a
uma metodologia ultrapassada, que não dialoga com a realidade. Esse modelo
parece representar o desconhecimento do fato de que o futuro jurista estará
inserido no contexto social, como agente transformador. Para que isso ocorra,
se faz necessária uma formação que o prepare de maneira adequada para a adoção
de um papel fundamental no processo de transformação da sociedade.
A educação jurídica
teima em desconsiderar que a criatividade é o destino do homem, e que a arte –
espaço da criatividade – deveria ser uma eterna parceira na busca do
conhecimento, uma ferramenta essencial à compreensão do mundo que nos cerca, e
que é regulado pelo direito. O processo educacional não pode prescindir desse
instrumento e os gregos compreendiam isso na Antiguidade pré-cristã.
A Grécia foi educada a partir das
manifestações artísticas. Homero, tratado por Platão como “o educador de toda a
Grécia” (Jaeger, 1994, p.61) ou “o
primeiro maior criador e modelador da humanidade grega” (Jaeger, 1994,
p.62) ofereceu subsídios, a partir da
divulgação de uma obra imortalizada pela História. Segundo Jaeger, “A concepção
do poeta como educador do seu povo – no sentido mais amplo e profundo da
palavra – foi familiar aos Gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua
importância” (1994, p.61).
A formação oferecida ao homem grego,
humanista e poética, poderia ser oferecida nos cursos de direito atuais mesmo
que, a princípio em doses moderadas. Uma formação que gradativamente absorvesse
conteúdos humanistas, para depois adicioná-los ao conteúdo dogmático,
tecnicista, poderia modelar juristas que unissem aos aspectos normativos,
frios, rígidos do sistema legal, a flexibilidade, a criatividade, a leveza, tão
distantes do tecnicismo burocrata que infelizmente prevalece na educação
jurídica.
MORIN
(1997, p.37) ensina que o ser humano, em qualquer cultura, “produz duas
linguagens a partir da sua língua: uma linguagem que é a linguagem racional,
empírica, prática, técnica; a outra que é simbólica, mítica, mágica.”. O
primeiro modelo apontado por Morin predomina na transmissão do direito,
desafortunadamente. Essa predominância se reflete, principalmente na frieza
normativa, na rigidez dogmática, na inércia legislativa. A esse estado, Morin
chama de prosaico, contrapondo-se ao estado poético, que é desconsiderado na
formação jurídica.
Para
Morin, a contemporaneidade assiste ao “desfraldar de um modo de vida
monitorizado, cronometrado, fragmentado, compartimentado, atomizado, e não só
de um modo de vida, mas também de um modo de pensamento em que especialistas
são doravante competentes para todos os problemas, e esta invasão da hiperprosa
está ligada ao desfraldar económico-tecno-burocrático.” Esse modelo precisa de
um antídoto, de um antagonista, que nos apresente o estado poético, mesmo
diante do diálogo com a ciência e com a filosofia.
Precisamos, mais do que nunca, de juristas preocupados com o
exercício da solidariedade, comprometidos portanto, com uma postura que
priorize o respeito à condição humana, que não reduza o indivíduo, como ocorre
muitas vezes no âmbito judicial, ao ato transgressor que praticou, mas que por
outro lado, possua a sensibilidade necessária para se posicionar ao lado dos
que defendem os interesses coletivos mais nobres; que não se atenha apenas à
letra fria da lei, mas também aos anseios sociais legítimos; que não sacralize
o direito, mas entenda a sua atuação profissional cotidiana como um sacerdócio.
Humanistas, e não positivistas. Esse perfil aponta para um jurista mais
preocupado em aplicar a justiça, e não a letra da lei propriamente dita.
Trata-se de
defender um resgate necessário de uma cultura de matiz universal, como ocorreu
com a Paideia, entre os gregos, e a Humanitas, entre os romanos, esta última
mais preocupada com os aspectos cosmopolitas da formação e que segundo ARANHA
(2006, p.89), buscava “aquilo que caracteriza o ser humano, em todos os tempos
e lugares”. E é entre os romanos que encontramos o embrião da educação
jurídica, desenvolvida de forma original pelo espírito pragmático romano.
Todavia, existe uma distância abismal entre esse modelo humanista, que se
apoiava na elevação da justiça, da igualdade e do bem, enxergando no direito
uma arte capaz de assegurar esses ideais e o formato educacional adotado por
muitos cursos de direito a partir do predomínio da ideologia capitalista e de
um modelo competitivo flagrantemente norteador das relações sociais.
Essa concepção
romana foi sufocada pelo modelo mercadológico que assaltou a contemporaneidade
e que passou a ser construído a partir da ascensão burguesa e do Renascimento,
passando pelo Iluminismo e pelo domínio do capitalismo e do individualismo
egoísta. MORIN, com propriedade, assevera que a Europa Ocidental presenciou o
nascimento da nação moderna que “instituiu um novo modelo de
sociedade/comunidade” (2005, p.148), e que permitiu que competições,
rivalidades e antagonismos individuais, coletivos, econômicos e ideológicos se
desenvolvessem. (Idem)
Na
antiguidade romana, o direito era visto de forma bem distinta daquela forma
adotada em nossa sociedade e que decorre da visão mercadológica, egoísta e
supostamente progressista apresentada pelo modelo capitalista. A ideia de
direito entre os romanos encontra-se relacionada com a percepção do direito
como a arte do justo equitativo, a partir do exercício da justiça, ou arte de
dar a cada um o que lhe é devido. Tal concepção também expressa a dimensão
humana. O direito, que era enxergado pela cultura romana como um verdadeiro
saber das coisas humanas e divinas, se apresentava representado por premissas
representativas dessa visão: viver
honrosamente; não prejudicar o próximo; dar a cada um o que lhe é devido; A
ética, o equilíbrio e a ponderação se apresentavam como aspectos essenciais ao
direito, que era o saber das coisas humanas e divinas.
O
espírito romano associou a justiça à natureza. Em Cícero, encontramos a defesa
da tese de que fomos constituídos pela natureza “para compartilharmos o senso
de Justiça um com o outro e para transmiti-lo a todos os homens”. (MORRIS,
2002, p. 38), Trata-se de uma reflexão emblemática para a compreensão da ideia
adotada pelos romanos adotaram acerca da justiça. Essa concepção também associa
o direito à arte, representada pelo exercício desse senso de justiça.
Edgar Morin assevera que o Século XX foi um século em crise, que deve
ser olhado “com um olhar binocular” (2010, p.21), em que o “primeiro olho” nos
apresenta o progresso, o desenvolvimento científico, econômico, industrial,
consumista, civilizatório. Com base nessa via de compreensão do mencionado
século, enxergamos o “progresso do desenvolvimento e de aparente racionalidade”
mencionado por Morin (2010, p. 21) como uma de suas características mais
marcantes. Essa ideia atinge a educação jurídica de forma contundente, uma vez
que existe um flagrante desprezo àquilo que não comporta em si uma relação
intensa com a questão do progresso e com uma falsa concepção de civilização, de
cidadania, de valorização, de qualidade. Assim, com base na relação existente
entre direito e sociedade, muitos enxergam aquele como um elemento que assegura
efetivamente a consolidação dos objetivos mais nobres desta última, assegurando
igualdade, segurança, liberdade, sem enxergar a real natureza do direito
fenômeno jurídico. Essa postura representa, de forma clara, o comodismo que
acomete muitos daqueles que não conseguem enxergar o direito como um
instrumento de transformação, e sim, apenas, como mera representação de uma vontade
social que, muitas vezes, pode se encontrar ultrapassada.
Existe uma automação inconteste na formação de bacharéis que são
condicionados a valorizar as disciplinas técnicas, como o Direito Civil, o
Direito Constitucional, o Direito Penal, o Direito Administrativo, dentre
outros ramos do conhecimento jurídico relacionados aos aspectos técnicos ou
mecânicos de sua formação, menosprezando a valiosa formação – essencial, e não
meramente complementar ou propedêutica – que é oferecida por campos distintos
do conhecimento, como a Psicologia, a Filosofia, a Sociologia, a História do
Direito, a Ciência Política, a Hermenêutica, somente para citar algumas
disciplinas vistas com importância menor por docentes equivocados e discentes
mal informados.
MORIN
(2005, p.181) considera que, diante da incapacidade de um sistema em tratar do
que acomete os seus problemas vitais, “ele se desintegra ou se transforma num
metasistema capaz de tratar desses problemas”, ou seja, “quanto mais nos
aproximamos de uma catástrofe, mais a metamorfose é possível.” (2005, p.
181) No que diz respeito à crise da
educação jurídica, no Brasil, a catástrofe parece já ter se estabelecido.
Precisamos agora de uma metamorfose, que se configure em salvação, mesmo que, aparentemente, nada
possa ser vislumbrado, nesse sentido.
Uma reforma
paradigmática sem precedentes no âmbito da Educação Jurídica se faz necessária,
para que essa espécie em extinção, que é representada claramente pelo jurista
conhecedor dos princípios que regem o Direito; pelo advogado conhecedor dos
princípios jurídicos, que se posiciona de forma favorável aos anseios legítimos
daqueles a quem representa; pelo Promotor Público conhecedor da realidade
social, bem como dos princípios de natureza sociológica, filosófica, histórica,
que devem nortear a sua nobre atuação como defensor dos interesses
sociais; pelo Procurador do Estado – ou
da República – preocupado com os anseios legítimos do Estado, bem como do
respeito que esse deve destinar aos cidadãos; pelo Juiz que atue como
magistrado combativo, que, indignado com a injustiça, procura reverter o quadro
a partir do lugar que ocupa na sociedade, não se extinga.
Existe uma inconteste necessidade em formar profissionais
detentores de um olhar humanista, bem como de uma visão crítica acerca da
sociedade e do próprio Direito que os cerca, juristas éticos, defensores dos
Direitos Humanos e de valores relevantes como a dignidade da pessoa humana, a
vida, a liberdade, a isonomia, incansáveis na defesa dos valores mais nobres
dentre os que devem nortear a vida social. Precisamos formar bacharéis voltados
para a discussão dos grandes temas nacionais e mundiais, defensores ferrenhos
da justiça, dos interesses legítimos da sociedade e daqueles que representam,
profissionais idealistas, humanistas, cultos, críticos.
O direito não pode ser visto
como fenômeno isolado no mundo do conhecimento. Sua autoridade como instrumento
regulamentador de condutas humanas, objeto de estudo fundamental ao
conhecimento das normas que regulam a vida social, não pode ser diminuída,
menosprezada, desprezada. Porém, não podemos deixar de levar em consideração o
fato de que o mundo jurídico não pode se desligar do mundo consuetudinário, do
mundo sociológico, do mundo religioso, do mundo filosófico. Entender o direito
dentro de uma plenitude, de uma abrangência que lhe deve ser atribuída, de uma
ligação e religação constantes com o mundo que regula, e que o cerca, é bem
mais salutar do que entendê-lo como fenômeno isolado, desprovido de conexões
com os diversos aspectos que compõem a vida social.
Ainda com base nas ideias de MORIN, podemos afirmar que existe uma
“segunda via”, uma contraposição à ideia de progresso e de racionalidade, que é
representada pelas convulsões e pelos horrores. Trata-se daquilo que ele denomina
“o segundo olho”, que enxerga um século ‘vulcanizado” por duas guerras de
proporções gigantescas, uma via “de convulsões e horrores”. Essa segunda via
decorre do fato de que, ao mesmo tempo em que ocorre, na modernidade, um
desenvolvimento extraordinário “da ciência, da técnica, da economia e da
capitalismo”, verifica-se, também, a existência simultânea de uma capacidade
surpreendente de invenção, de um lado, e, de outro lado, de uma capacidade de
manipulação e de destruição. (MORIN, 2011).
A universalização se concretizou nas últimas décadas. Essa sociedade
globalizada, universalizada em suas relações, principalmente tecnológicas e
econômicas, não experimenta uma solidariedade universal, uma ideia de
pertencimento a uma sociedade-mundo, no contexto de uma era planetária. Assim,
ao mesmo tempo em que se verificam claramente as consequências de uma
unificação eficaz, intensa, no que concerne às comunicações que se verificam no
âmbito mercantil e no âmbito técnico, também nos deparamos com os fechamentos e
as regressões, que levam a isolamentos tão significativos quanto as
aberturas. (MORIN, 2005, p. 163)
As forças de destruição parecem levar significativa vantagem, em muitos
momentos, sobre as forças de regeneração e de conservação. Os nocivos efeitos da atuação dessa segunda
força projetam seus reflexos sobre a educação jurídica, que não consegue
apresentar elementos de resistência consistentes o suficiente para a efetivação
de um combate eficaz contra as forças de destruição. Assim, a violência, a
injustiça, a desigualdade, a intolerância, acabam imperando em um mundo que,
aparentemente, não consegue reunir as forças necessárias à resistência.
As consequências dessa segunda via também atingem diretamente, na
contemporaneidade, à educação jurídica, que não consegue indicar que caminhos
devem ser percorridos na busca de soluções para algumas situações que
demonstram a existência de uma crise sem precedentes na moral social, uma crise
que repercute também sobre o direito. Na era planetária em que vivemos
é fundamental a preparação do bacharelado para a compreensão dos mecanismos que
regem a sociedade-mundo. Tal formação deve valorizar a adoção de temas
transversais, a dialogar com todas as disciplinas, como a dignidade da pessoa
humana, a tolerância, a solidariedade, a conciliação, sendo fundamental a
discussão de temas urgentes como a morosidade do Poder Judiciário, a violência
doméstica, o crime organizado, a impunidade, o sistema penitenciário, o
preconceito, a desigualdade.
Vivemos em uma Nova Idade das Trevas e
precisamos de um novo Renascimento. A exemplo do que aconteceu na Idade Média e
na década de 1960, o homem precisa vencer a escuridão mais uma vez e voltar à
luz. De tempos em tempos a História, cíclica, nos mostra a necessidade de regeneração,
reorganização, de bifurcação e de aposta. Assim, urge implantar uma educação
jurídica que refute a fragmentação dos conteúdos disciplinares, exercitando a
religação, e que consiga captar a complexidade do mundo, valorizando o que está
tecido em conjunto. É necessário evitar os erros do passado e valorizar uma
educação que privilegie a diversidade e a solidariedade, uma educação que
liberte, contagie e revolucione, negando o isolamento disciplinar e favorecendo
o reconhecimento da identidade planetária do indivíduo. A arte
auxilia sobremaneira à necessária compreensão da antropoética, nas palavras de
Morin, “o modo ético de assumir o destino humano”.
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